Agência Brasil Buenos Aires
Deportada há três dias da Nicarágua, a cineasta brasileira Emilia Mello, 40 anos, ainda tem muito vivo na memória o que viu no país. “O clima é de muito medo e desespero”, conta. Ela ficou detida por mais de 30 horas pelas autoridades nicaraguenses, antes de ser expulsa do país.
O episódio surpreendeu a documentarista que, em 1999, foi à Nicarágua como voluntária, depois que o furacão Mitch atingiu o país, deixando um saldo de 3 mil mortos. Ela voltou em julho deste ano, após o assassinato da estudante de medicina pernambucana Rayneia Gabrielle Lima, para fazer um documentário sobre a crise deflagrada em abril. Em quatro meses de protestos contra o governo, 322 pessoas foram mortas, muitos jovens e crianças.
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a cineasta relata os momentos de tensão que viveu antes de ser expulsa da Nicarágua, descreve a situação vivida por muitos jovens nicaraguenses contrários ao atual regime e fala sobre os planos de voltar ao país para conseguir "contar essa história" e fazer com que "o mundo tome conhecimento do que se passa" no país.
Agência Brasil: Como você foi presa?
Emilia Mello: Eu estava a caminho de uma marcha na cidade de Granada, em um ônibus, junto com um grupo de estudantes de 17 a 25 anos. No total, éramos 20. Nunca chegamos lá. A polícia antimotim parou o nosso ônibus, para fazer o que chamam de controle de rotina – uma “rotina” que é de terror. Nós não levávamos cartazes, nem nada que indicasse que íamos a uma passeata. Ainda assim, a primeira medida foi pegar todos os nossos celulares. Uma companheira conseguiu esconder o dela e mandar uma mensagem a outro companheiro. Foi graças a ela que souberam onde estávamos e alertaram as embaixadas [dos Estados Unidos e do Brasil. Emilia tem dupla cidadania].
Agência Brasil: E o que aconteceu?
Emilia: Eles [policiais] já tinham capturado os organizadores da passeata contra o governo, em Granada. Separaram nosso grupo, colocando cinco meninos na caminhonete deles e dirigindo nosso ônibus, sem nos dizer para onde íamos. Fomos levados para a cadeia de Jinotepe. Pegaram nossas coisas, tiraram fotos da gente, e nos processaram.
Agência Brasil: Qual foi o momento mais tenso?
Emilia: Um dos piores momentos foi quando uma menina do nosso grupo começou a ter uma ataque epiléptico muito forte. O rosto dela começou a inchar com falta de ar. Ela estava sufocando, a ponto de morrer. E ninguém fazia nada. Eu tive que sair, rodeada por atiradores, que nos cercavam, e pedir ajuda. Eles nos mandavam ficar calados. Foi horrível, mas acabaram levando a menina num veículo, sem ninguém para acompanhá-la no meio do ataque epilético. Sem nenhum cuidado médico. Foi um milagre que ela tenha sobrevivido.
Agência Brasil: O que houve com os demais integrantes do grupo?
Emilia: Fomos levados para outro presídio, na capital, Manágua, onde nos separaram para interrogações. Foram momentos muito tensos, porque os estudantes, adolescentes, tinham certeza que iam morrer e me diziam: “Eu e ele vamos morrer com certeza”. Eles já tinham sofrido os ataques de grupos paramilitares, ligados ao governo. Eles já tinham vivido a violência de perto e visto o que tinha acontecido com outros. E sabem que não há devido processo na Nicarágua. As autoridades fazem tudo para intimidar, para que as pessoas desistam dos protestos e parem de sair às ruas para pedir democracia e liberdade. Por volta das 18h30 do dia 25 de agosto, os estudantes foram liberados e eu fui levada para interrogatório pelas autoridades de migração.
Agência Brasil: Como foi o interrogatório?
Emilia: Fui levada para um quartinho e uma guarda fez uma busca completa. Passaram toda a noite revirando minhas coisas – cada recibo que eu tinha, todas as imagens da minha câmera. Cinco pessoas me interrogaram até as 3 horas da manhã. Depois, me deixaram dormir até as 7h, antes de retomar o interrogatório. Queriam saber como eu tinha entrado no país, quem eram meus contatos, com quem eu estava andando.
Agência Brasil: Deram alguma explicação sobre o motivo da detenção?
Emilia: Sim, disseram que eles estavam defendendo a Revolução Sandinista de 1979 [que derrotou a ditadura de Anastásio Somoza e da qual o atual presidente, Daniel Ortega, foi um dos líderes] e insistiam que essa revolução foi o resultado do esforço de muitos. Mas depois do que eu vi, na minha opinião, os verdadeiros herdeiros da revolução são os estudantes que têm coragem de sair às ruas para pedir tolerância, igualdade, liberdade. Para eles, Ortega e sua mulher [e vice-presidente] Rosário Murillo são os traidores. Seu único objetivo é o poder absoluto. Eles estão perseguindo até ex-revolucionários sandinistas.
Agência Brasil: Você esteve na Nicarágua em 1999, quando o país estava se recuperando da guerra civil, que acabou em 1990, e acabava de ser assolado pelo furacão Mitch, que matou mais de 8 mil pessoas na América Central. Que diferenças notou, quase vinte anos depois?
Emilia: Em 1999, como voluntária, trabalhei com muitos sandinistas, que organizavam a ajuda humanitária. Era uma situação triste, mas havia muita solidariedade. Conheci gente que lutou na revolução e depois na resistência [aos contrarrevolucionários financiados pelos Estados Unidos] e ainda tenho uma profunda admiração por esse povo e sua garra em defender seus ideais. Mas o clima hoje é completamente diferente. A Revolução Sandinista foi pervertida por Daniel Ortega e sua mulher. Existe um medo muito grande nas ruas. Os estudantes vivem escondidos dentro do próprio país – nas montanhas ou nas casas de pessoas, onde esperam não ser encontrados. Muitos estão fugindo para a vizinha Costa Rica.
Agência Brasil: Levantamento da Comissão Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (CIDH) mostra que dos 322 mortos em quatro meses de protestos, 23 são crianças e adolescentes e apenas 21 policiais. Muitos foram mortos com tiros na cabeça e no peito. Ainda assim, os estudantes planejam continuar manifestando?
Emilia: Está virando uma situação quase impossível. Estão perseguindo as pessoas. Eu decidi voltar a Nicarágua depois dos ataque em abril à paróquia Divina Misericórdia, que durou 15 horas. Naquela época, os paramilitares faziam ataques aleatórios contra estudantes e líderes comunitários. Atiravam contra casas, pessoas. Os opositores começaram a formar redes, com casas seguras, para se esconderem. Viraram foragidos dentro do próprio país.
Agência Brasil: Quais são as diferenças entre os anos de 1990 e agora?
Emilia: Agora estão em outra fase, de formalizar a perseguição. No final de julho, introduziram uma Lei Antiterrorista, que pune qualquer pessoa acusada de ajudar os opositores ao regime. É uma situação desesperadora porque essas crianças não têm para onde correr. Estão sendo perseguidas incansavelmente. A prova é o que aconteceu conosco. Não levávamos cartazes, nem nada que sugerisse que íamos a uma manifestação. E terminamos detidos, sem o devido processo. Eu fui expulsa sem receber jamais uma cópia da ordem de deportação. Me acusaram de envolvimento em assuntos internos do país e de conviver com delinquentes armados.
Agência Brasil: O que houve com o material que você conseguiu filmar?
Emilia: Eles apagaram todas as imagens de um cartão [de câmera] que eu tinha. Estamos tentando recuperá-las. Roubaram as chaves do meu apartamento, onde deixei tudo – inclusive meu computador e passaporte brasileiro. Não quis voltar para buscar minhas coisas porque não queria colocar ninguém mais em risco. Saí do país com o meu passaporte norte-americano e minha canga de praia que me salvou a vida. Serviu de toalha, de cobertor, de almofada.
Agência Brasil: Você pretende voltar à Nicarágua?
Emila: Sim. Essa história precisa ser contada. Mas a preocupação agora é com a situação daqueles que ficaram lá. Ainda não consegui retomar contato com todos. Alguns continuam escondidos. É preciso tomar cuidado porque o governo está fazendo tudo o que pode para intimidar e evitar, justamente, que o mundo tome conhecimento do que se passa lá.